Estou com vergonha!

Loreno (83), meu pai, faleceu no Dia das Mães de 2019. Já se vão dois meses sem o meu querido

Loreno (83), meu pai, faleceu no Dia das Mães de 2019. Já se vão dois meses sem o meu querido 'velho'!
Num amanhecer desses, sonhei. Eu arrumava a minha cama. Puxa cobertor aqui. Atravessa lençol ali. Estava difícil. Quando consegui ajeitar a indumentária da cama, lá estava um corpo barrigudinho esticado embaixo dos lençóis e dos cobertores, todo tapado. Pensei:
– Quem é o danado que invadiu a minha cama?
Ergui o cobertor. Era o meu pai. Deduzi, 'é uma miragem! Uma alucinação da visão matinal!'. Sacudi os pensamentos. Coloquei uma mão de cada lado da cabeça do meu pai. Era ele, real, em carne e osso, com esqueleto e tudo. Ao toque das minhas mãos, ele abriu os olhos. O sorriso misterioso da partida estava com ele.
– Aí, nono, tá tudo bem?!!!
– Aahhh!!! … Mais ou menos! – Disse o Loreno.
– Como assim 'mais ou menos'?!
Fez-se um silêncio de neblina e frio.
– … estou com vergonha! – Respondeu o meu pai.
Acordei suado, com a sensação de que alguém fez xixi no mundo.
Foi este o sonho.
Recontando os fatos, surge, ao amanhecer, o dito do meu pai:
– Dai de comer a quem tem fome! Dai de beber a quem tem sede!
Lição tão sábia e tão simples. É esta a vergonha que devia mover o mundo. Vergonha de que pessoas, gatos, jaguatiricas, quatis, árvores, carvão, ferro, petróleo, terra, ar e água tenham fome e sede. Vergonha de cortar direitos trabalhistas e previdenciários de quem ganha menos. Eles movem a essência da economia. Vergonha de não repensar as grandes fortunas, os ganhos desmedidos, que espalham fome e sede. De concentrar tanto e dividir tão pouco. De não enxergar o óbvio, dos 20 aos 60. De não ver que lugar de criança é dentro de um abraço dos pais, ao lado dos seus brinquedos. Lugar de velho é a dignidade de comer e beber na amplidão das palavras. Eu tenho 54 e a vista já não alcança as letras de ontem. Jogo futebol e percebo que o alto rendimento é um momento especial para depois do jogo.
– … estou com vergonha!
É esta a lição que o Loreno traz do além ou do aqui. Sabe-se tão pouco da real existência, em carne e osso, com esqueleto e tudo.