Bartelle, quase toda uma família de Farroupilha na boleia de um caminhão

São 11 os integrantes de um grupo familiar que tem a vida marcada pelas curvas e retas das estradas do Brasil

Silvestre Santos
silvestre@ofarroupilha.com.br

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Tudo começou em 1975 com o irmão mais velho, João Antônio Bartelle, o primeiro de uma família que acabou tomando gosto pela boleia dos caminhões e passou a percorrer estradas como forma de ganhar a vida. Foi o que contou Ângelo Bartelle, um veterano da direção que em outubro próximo completa 65 anos, natural da Linha Amadeo, 2° Distrito de Farroupilha. Casado com Marilene Brustolin Bartelle, a família mora há 42 anos na zona urbana de Farroupilha.

Angelo Bartelle conta que em março do ano que vem completa 47 anos como caminhoneiro. “Mas viajei 45 anos, no Brasil, fazendo (viagens para) São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (Minas Gerais)”, conta. Com orgulho da profissão e em alusão ao Dia do Motorista, 25 de Julho, o veterano do volante conta que o início foi bem difícil, com transporte de algumas cargas de vinho, da Serra Gaúcha, principalmente de Bento Gonçalves, e cargas de arroz, de Porto Alegre e Barra do Ribeiro, para o Centro do país.

Uma curiosidade: “Quando a gente pegava a carga já deixava a comissão. Lá em Porto Alegre, quando o cara chamava para dar a carga a gente já deixava um tanto por cento para ele”, revela o Bartelle, pai da Simone (comerciária), do Rafael (contabilista) e do Rodrigo (outro caminhoneiro). “Aqui isso acontecia muito pouco, só com alguma carga de vinho, lá por 1977, 1978”, garante ele.

As cargas do produto derivado da uva eram transportadas, geralmente, da Cooperativa Vinícola Aurora para o Rio de Janeiro. “Era tudo (vinho em) garrafão, solto em cima (do caminhão). Dois mil garrafões”, lembra. Questionado se valia a pena fazer uma viagem tão longa, Angelo Bartelle é sucinto: “era o que tinha!”. No mesmo sentido, se compensava transportar arroz para São Paulo, repete: “não era mais vantajoso, mas era o que tinha. Não havia ‘plano b’, então a gente fazia”.

O que motivava a realizar o transporte com pouca lucratividade, segundo afirma, era a vontade de trabalhar, a necessidade de manter a família e criar os filhos, e pagar a prestação do caminhão. Nessa estrada da vida, Angelo diz que chegou a realizar algumas viagens transportando os móveis de famílias, quando estas decidiam mudar, com “mala e cuia”, para outras cidades.

Companheiros de jornada

Sobre o que de bom ele conheceu nas estradas por onde andou, Bartelle garante que foi “o companheirismo. No início era bem melhor, onde a gente parava não tinha pressa para almoçar, por exemplo. Todo mundo puxava uma prosa, e se era preciso ajudar para algum problema, sempre aparecia quem estava disposto a dar uma mão. Hoje é muito diferente porque tem que acordar cedo e acelerar até de noite”, diz.

“Quem tem localizador no caminhão só viaja das 6h às 10 da noite, as vezes nem para almoça, que é para ganhar tempo na estrada”, comenta, sobre uma das dificuldades que vê nos dias de hoje. De ruim, lembra de um acidente em que foi envolvido, há 35 anos, no vizinho estado de Santa Catarina, que resultou em vítimas fatais. “Um carro entrou embaixo do caminhão”, rememora o caminhoneiro, quase aposentado.

Peito estufado

Angelo Bartelle não esconde a satisfação por ter escolhido ser caminhoneiro. “Tenho muito orgulho da minha profissão”, diz. “Tudo que conquistei e tenho hoje foi graças ao meu trabalho”, afirma, com um adendo: também nunca pagou seguro. O sufoco foi quando seu caminhão foi roubado. “Carreguei em Carlos Barbosa, abasteci e deixei o caminhão no posto. Quando fui viajar no sábado de manhã, cadê o caminhão?”, recorda.

Com a sorte ao seu lado, o caso ocorrido há sete anos acabou tendo um desfecho positivo, justo quando achava que tinha perdido seu maior patrimônio material. “Vai daqui, vai dali, na segunda-feira acharam a carga do leite que estava no caminhão, ‘puxaram’ a placa e era uma caminhonete roubada. Pelas notas viram que era o que eu transportava. E na terça-feira acharam o caminhão, no meio do mato, em São Francisco (de Paula), daí fui lá e busquei”, afirma.

O caminhão que foi roubado, fabricado no ano de 1992, hoje passa a maior parte do tempo estacionado na frente da casa da família, coberto com lonas para evitar a ação do tempo – chuva e sol – sobre a pintura. “Mas foi um susto, meu Deus do céu. Achei que tinha perdido tudo”, admite, hoje, comentando que usa o veículo apenas durante as temporadas da safra de uvas, transportando de alguns produtores para a cidade de Garibaldi.

“A carga tinha seguro, estava tudo bem. Mas até eu provar que focinho de porco não é tomada, que eu não tinha nada a ver com o roubo, sempre tem aquela coisa que, até então o ladrão era eu” – Angelo Bartelle, caminhoneiro.

A evolução, segundo Angelo Bartelle

“Hoje não tem mais nas estradas aqueles motoristas de cabeça branca. Os caminhões só faltam falar, de tanta tecnologia. Quando comecei, era só 1113 (um dos modelos dos caminhões Mercedes Benz), com queixo duro (sem direção hidráulica), entre-eixos curto… O Roque, meu irmão caçula, tem um automático, e diz que nunca pensou que um dia compraria um caminhão que não precisasse mudar marcha”.

O filho que seguiu os caminhos do pai

Aos 35 anos, Rodrigo Bartelle é o filho do meio do casal Angelo e Marilene, irmão de Simone e Rafael. Casado, com um filho de oito anos, é amante de uma boleia já há 13 anos. Ao contrário da maioria dos outros parentes, não percorre longas distâncias pelo Brasil afora e, também ao contrário, não é autônomo, mas profissional com “a boa e velha” Carteira do Trabalho e Previdência Social, a CTPS, devidamente assinada pelo empregador.

A opção pelo volante de um peso-pesado, admite, é influência do pai. “Está no sangue, não tem como ser diferente. Aos dois anos estava sempre junto com o pai, já viajava para São Paulo e queria sempre estar com ele. Quando chegou a época do colégio, não via a hora de começarem as férias, de julho ou do final do ano, e meter o pé com ele para qualquer lugar que fosse”, conta.

Funcionário há 11 anos de uma empresa de Farroupilha, faz transportes para os três estados do Sul. Ao contrário do pai, Angelo Bartelle, ele conta que nos dias atuais ser caminhoneiro é uma opção que exige bem mais sacrifícios. “As estradas estão bem complicadas, falta segurança e melhores condições”, afirma. Saudade mesmo da família, e do filho pequeno, “só quando tenho que ficar mais tempo e preciso dormir fora, caso das viagens ao Paraná”, comenta.

Mesmo com os perrengues que enfrenta no dia a dia, Rodrigo garante que não consegue se enxergar em outra atividade. “O que eu gosto de fazer é viajar. Não me vejo fazendo outra coisa”, assegura. Nestes 13 anos de boleia, ele afirma que nunca se envolveu em acidentes e não passou por sufocos, como um assalto, por exemplo. De bom, na estrada, diz convicto que o melhor é o relacionamento com as pessoas, e que o ponto negativo são as condições das estradas.

“Está bem ruim de andar, hoje em dia, porque é muito buraco, muita estrada mal cuidada. Quem desce a Rota do Sol em direção às praias pega cada buraco que é capaz de quebrar um eixo. Falta manutenção e, ao mesmo tempo, tem muito pedágio, com tarifas muito altas. Quem anda para os lados de Pelotas, na Zona Sul do estado, com um caminhão como o meu, de três eixos, paga quase R$ 70,00 para ir e o mesmo valor para voltar”, se queixa.

Família estradeira

  • João Antônio Bartelle – pioneiro – falecido há 13 anos
  • José Bartelle – irmão
  • Angelo Bartelle – irmão
  • Alcides Bartelle – irmão – falecido há um ano
  • Pedro Fernando Bartelle – irmão
  • Roque Bartelle – irmão
  • Santo Bartelle – filho de João Bartelle
  • Alexandre Bartelle – filho de José Bartelle
  • Evandro Bartelle – também filho de José Bartelle – vítima fatal em um assalto em São Paulo
  • Sidnei Bartelle – filho de Pedro Bartelle
  • Rodrigo Bartelle – filho de Angelo Bartelle

Rodrigo e o pai, Angelo Bartelle: a profissão de caminhoneiro corre nas veias da família. Foto: Silvestre Santos