Mirtes e Miguel

O local é denominado Cais da Alfandega, zona nobre, na capital de Recife, onde está construído um condomínio de três

O local é denominado Cais da Alfandega, zona nobre, na capital de Recife, onde está construído um condomínio de três torres, empreendimento de alto padrão, planificado com luxuoso e faustoso projeto arquitetônico, conhecido como torres gêmeas.  Além da beleza, o residencial está adjacente ao mar, com um aprazível panorama do horizonte. O domínio predial, por toda sua estrutura, por sua magnificência e ostentação, com todos os requintes de conforto de quem deseja como moradia, certamente deve ser habitado por gente que faz parte da sociedade endinheirada, local propício para a vida burguesa. Numa daquelas torres, exatamente no nono andar, mora uma família afortunada, que desfruta de todos os bens materiais possíveis. Naquele endereço trabalhava a empregada doméstica de nome Mirtes, ela que em plena pandemia continuava trabalhando. Enquanto isso, a creche onde ficava o menino Miguel (cinco anos), filho de Mirtes, estava inativa. A solução para o imprevisto foi solicitar à patroa que “desse uma olhadinha em Miguel”. A solicitação foi feita, em razão de que Mirtes iria passear com o cachorrinho de raça, na parte externa e térrea do prédio, assim Mirtes cumpria sua obrigação passeadora canina. Miguel ficou aos cuidados da patroa. Repentinamente disse que estava com saudade da mãe, queria encontrá-la, determinado queria ver a mãe. A patroa o atendeu. Um vídeo gravou o drama, a caminhada de Miguel para a morte. Porta do elevador aberta, elevador de serviço (Miguel é um negrinho), a patroa lhe diz alguma coisa, aperta determinado botão, a porta do ascensor fecha-se, assim o menino é catapultado para a desgraça, tragédia consumada. A patroa volta para o apartamento para que a manicure termine seu serviço.  A porta do elevador abre-se e o garoto se enreda por caminho desconhecido, chegando até uma abertura. Por ali pretende encontrar a mãe, não a encontra, encontrou a morte. Cai de uma altura de 35 metros, no chão um corpo estatelado mortalmente. Foi dessa trágica maneira que Mirtes pela última vez viu seu filho. A patroa que deveria proteger Miguel, não o fez. Uma verdadeira mãe jamais teria o descuido com os filhos de outra mãe. 

Todo esse funesto fato mostra, dolorosamente, a desigualdade social, as diferentes condições de maternidade envolvendo a mãe rica, a mãe pobre.  Mirtes, a empregada, a mãe, de condições financeiras precárias, como tem que trabalhar, lhe é negado o direito legítimo da maternidade, cuidar e criar dignamente o filho Miguel, é obrigada a terceirizar o filho, por força de seu trabalho cotidiano, de ida e volta, da favela para o trabalho. Entrevistada, Mirtes fala numa dor muito forte no peito. Sente que algo está engasgado em sua garganta, quase sufocando-a, sente a aspereza no ar. Tristeza e angústia, unem-se em profundo sentimento de amargura. Tudo acontece no inesperado e precoce velório de Miguel. Desesperada, afligida e soluçante chora, verte lágrimas, diante do corpo inerte, sem vida, do filho, marcado pelos desígnios da vida. O desígnio de Miguel, foi marcado pela negligência, pelo modo relapso, pela irresponsabilidade daquela patroa.